Metaforia Constante de Olhos que Ouvem Vida [ou resgatam o trauma da boca calada]

30.10.06

Refeição

No começo era por falta de opção.

Começara a tomar suas refeições à mesa vazia porque os horários nunca eram combinados. Compromissos comedidos como sempre aturdiam os relógios presos aos braços de cada um daquela família. Ora era hora para reunião, ora era hora de voar. Às vezes era hora de voltar mais tarde da escola, ora já tinha passado a hora de almoçar. O fato é que sozinho à mesa, comia na-mais-santa-paz-de-deus. Era como sua mãe, no passado bem-passado, que gostava de apetitar os nem um pouco bem-passados bifes à hora do jantar,

- Todos gostavam deles bem vermelhinhos.

pedia para comer: na-santa-paz-de-deus. Não, ela não era cruel. É que tem horas que crianças berram. Ou às vezes só perguntam. E cansada, pensava que aquele era o momento de comer na paz-de-deus. E por isso, não podia ter música, não deveria haver gritos, nem as confusões geradas por uma casa cheia de gente. Ou cheia de espírito. Porque por menos gentes que hajam nalgum espaço, são mais de um complexo mundo a se expressar. E quando o convívio não inventa mais barreiras, elas se põem a dizer e dizer e dizer coisas que habitam suas cabeças sem o medo de não serem ouvidas. Não precisa. E é aí que o barulho cansa. E aí vamos comer na-santa-paz-de-deus.

Acontece que ele não sentia bem-verdade aquela paz-de-deus no coração. Olhar para o lado e ver que não há mais barulho. Olhar para frente e a parede não compartilhar os mesmos olhares. Sim, porque a mesa agora era encostada na parede. Já não havia mais precisão de tantos lugares disponíveis. O que havia eram os tempos desconexos que levavam cada um a escolher sua própria vida, na-santa-paz-de-deus.

Depois do silêncio da parede. Da imensidão da mesa, que mesmo pequena não aconchegava muito bem aquele prato tão sozinho. Aí era o rádio. Depois a TV.

- Puta merda, como TV é chato!

Voltava pro rádio. Que preenchia. E ele comia bem vagarzinho toda a comida que tinham posto no prato. Pois ainda, no começo, havia alguém pra prato-posto.

Mas depois era tempo de não ter mais tempo. Comia qualquer coisa. Ora sem mesa, ora sem cadeira, ora sem prato, ora sem comida, geralmente com muito barulho, muito em freqüência com muita pressa, e muitas vezes com pouco dinheiro. Era só comida. Comer pra viver e não o contrário era o que dizia o seu avô. Então, não precisava mais se preocupar com o que havia ou não havia. Não dava tempo. E em geral tinha mais gente.

Passado o tempo, o tempo voltava a ser. Tempo. E tinha tempo pra comer. Não todo dia, não toda hora. Mas agora, tinha tempo. E vez ou outra marcou com amigos, com chegados, com pessoas, a hora de comer. Juntos. Mas agora não sabia. Porque aprendera a comer calado. Só ouvindo. Ouvindo a santa-paz-de-deus. Que para ele eram barulhos. Sempre. Mas a habilidade de berrar junto à comida, ah, essa havia sido perdida com longa data. Vira que não era como andar de bicicleta.

- A gente nunca esquece.

Simplesmente não era mais possível. Ficava nervoso querendo falar tudinho aquilo que a parede esquecera. Que a santa-paz-de-deus insistia em manter em segredo.

E percebeu que achara a paz dentro de si. A santa-paz-de-si-mesmo. Porque toda hora que era hora de comer, ele comia em paz. Consigo mesmo. Bem vagarzinho sem a pressa de falar. Não porque podia falar a qualquer momento com alguém que precisasse. Mas porque, por ora, aprendera a esperar.

26.10.06

Olho Mágico

Dúvidas pairavam no ar. Como a poeira levantada pelo trânsito da avenida lindeira, era possível tornar imagem as questões que a circundavam. A cada movimento, aqueles minúsculos elementos se moviam, sem massa, ao redor de seu corpo. Iluminados como fantasmas que não existem, pelo sol de fim de tarde que invadia o espaço como se tivesse sido convidado à mais elegante das festas sociais. Daquelas festas que não são só suas. Porque se fossem iríamos nus. Iríamos à vontade, sem a graça mentirosa, sem etiquetas estabelecidas. Estabilizadas. Mas esse sol que invade como convidado, tem a habilidade de ser a graça perfeita e de cartilha, sem deixar de ser sol. Sem deixar seu em-si-mesmo. E já nessa hora, a campainha toca.

E ela larga todas suas imagens e perguntas entregues à gravidade de sua realidade, ali. Perto da cadeira que ocupava enquanto cozia tecidos aleatórios. Foi à porta mágica atender pelo olho de entrada. Abismada, viu que não era nada. Não era ninguém. E em um segundo-mais-terceiro-do-que-quarto, foi capaz de retornar à infância. Lembrou-se de um momento de expectativa imensurável. De fé inabalável. Do dia em que Papai Noel, ele-próprio, tocou sua campainha. E ali deixou em quantidades, presentes que a deixariam tão feliz por um bocado de tempo. Lembrou-se da luz que aquele dia inventou. Foi capaz de sentir o cheiro que sua casa tinha no dia em que a mentirinha-que-se-faz-verdade entrou pela fresta da porta da frente. E noutro segundo, retorna. Retorna àquele tempo em que nenhum bom-velhinho seria capaz, com seus presentes coloridos, roubar-lhe um sequer sorriso. Curiosa, mete a cara para fora para ver o quê que há. Não há quê algum. Teria sido delírio?

A porta é fechada. E ela torna à sua cadeira mais duvidosa do que estava: tinham as imagens vibrações? Dizia o sol alguma coisa em sua mente? Não era possível que de tudo-um-nada que habitava suas pestanas fosse feito fato sair som. E ainda som de campainha. Fosseria um desejo incontido de ver papai noel de novo? Ou seria bem-verdade que sua porta tinha sido cortejada?

E num repente-muito-mais-que-um-instante ela torna à porta, que em silêncio não esperava o toque tão determinado de sua amassa-aneta. Um susto. Tinha alguém-de-trás-da-porta. Um alguém esperançoso que pudesse pelo olho, ao contrário do propósito, olhar para dentro aquela menina. Pelo olho que dizem mágico, penetrar a sua alma e oferecer-lhe novo mundo. E quando a porta abre novamente, não há mais o que seja feito. E ele diz que vai falar, mas o quinto já passou. E a porta já fechou. E o olho não deixou. Não o deixou que entrasse. Não sem amor. Não sem suficiente amor.

E quem foi que disse que os olhos são capazes de medir o-quanto-amor que carregamos no coração? Fosseria a menina responsável por valioso instrumento? Ou seria mais um devaneio de sua mente?

- Pois a campainha fica lá pra ser tocada. E o olho pra ser mágico.

20.10.06

Anagramarias

Ouvindo um pouco da história da Ana e o Mar antes de dormir, sentiu um pouco do carinho que sentiram por Ana. Viu as perfeições compreendidas de sua personalidade. Ouviu a maneira verdadeira com que olhos específicos tratam de ver as específicas características que, de fato e unicamente, são capazes de enxergar. Quase como num esquema chave fechadura, sistema proteico de desencaixes sincrônicos, são olhos que vêem alguns feixos de luz. Não vêem outros mas vêem esses. Vêem Ana. E o Mar.

Vêem-na linda e têm ciúmes do Mar. Pela poesia. Mar e Ana.

Maria Amaria. Amarias Maria?
Maria sem nada. De nada a Maria.
Há na Maria. Maria Ana.
Conforme Maria. Maria Flor.
Maria morria. Maria de dor.
Maria pedia. De dia Maria.
Maria marinho. Azul de Maria.

Maria só.
Só Maria.
Não a Maria,
Viva só, Maria.
Só no mar, Maria.
Pra ti não há, Maria.
Ninguém pra te Amar.

16.10.06

Mortes Secas

- Não choramos sua morte;
Celebramos sua vida!

Disse o primo para um 'Pêsames' ao telefone.

Ela morreu. Faleceu. Bateu com as botas.
Não foi pro saco porque ainda não é hora.

Depois de 105 anos.
Nascida no primeiro ano do século passado.
Conheceu aquele, conheceu esse.

Eu vi-a rindo. Lúcida, trôpega, lívida.
6 foram os filhos.
4 tataranetos.

Quanto tempo de vida.
Quanto tempo na janela...

Agora que pulou,
fica a conversa.

Fica o carinho,
e bastante do amor. Os laços.
Que, assim, não foram rompidos.

Vai com deus, dona Chiquinha.
Vai tranqüila, levando vida.

Diga olá pro meu avô,
E visita nóis de quando em quando.
Que no coração e nas memória'
será sempre bem benvinda.

É com carinho,
Que te tenho - e os causo' contado' -
guardada aqui,
no quentinho do coração.

15.10.06

Para o cinema, com verdade

Ele vem. No meio da noite. No momento em que a vida pára e saímos ao léu. Saímos para fumar o ar livre. Tragando aos poucos. Tragando com prazer. Eu te espero. Mas não tenho certeza.

Ele vem e me surpreende. À minha frente, a cidade. Eu vejo a cidade enquanto fumo o vento. Ele chega e me envolve em seus braços.

Estou de costas para você. Meu coração dispara. E eu me sinto envolta. Envolvida de fato. Você está ali. Comigo. Te ouço respirar. Te escuto o coração. Pego em tuas mãos. Minha boca te espera. O meu corpo agradece. Não te quero mais perder. Você é meu. Só meu naquele momento. É só o que quero. Quero você, você. Não mais só a mim.

E com o maior carinho do mundo. O mais-possível, observa a cidade comigo. Eu choro. Feliz. E me viro. Para te olhar. Te beijo a testa. Te beijo o olhar, e sou beijada por ti. Um beijo tenro. Cúmplice. Amigo. Completo. E de verdade. Da mais pura verdade. Não precisarei de você em todos os momentos mais. Porque te terei assim, por inteiro, ao menos uma vez ao dia. Uma vez que saiamos para fumar juntos.

Tragar a poeira da cidade que não cessa.
Discutir a vida que os dias nos trazem.

12.10.06

Assédio do Ex-

Excepcionalidade.

Excertos de uma vida perfeita.

Excessões retiradas da ordem. Do certo.

Extraídas como os sisos.

Estavam lá, mas não eram para
estar.

Excluídas do conteúdo.

Execradas pelo abuso do seu direito de ir e vir.

Expulsas, externas.
Expressas.
Exterminadas.

Esquecidas.

Excelentíssimas,

É claro.

9.10.06

E aí...

Aí, eu saí e criei um monte de histórias pra todo mundo ouvir.

Aí, eu falei com um monte de pessoas que estavam ali.

Aí, minha mãe me falou que meu avô construía pontes.

E era um monte de pontes.

E no meio da ViladaBia, que não era da Bia, eu pedi: comida!

Eu tô com fome.

Eu tô com fome de vida.
Eu tô devorando vidas.
Voraz, viajando e experimentando.

Ouvindo, sorvendo, chorando.
Sorrindo, pedindo, escutando.

Vidas e vidas e vidas.
E sobre a vida,
por sobre vidas,
em meias vidas,
inteiras vidas,
aquela colcha,
já começou.

Era hora.

Aí...

5.10.06

Réplica

Não te responderei porque não queres ouvir.

Te grito as palavras e tu não escutas.

- Menina teimosa.

4.10.06

Prisão e um lamento

Como pedes para mim tantas definições?
Como exiges tão fortemente que tenha vivido tudo aquilo que não vivi?
(ainda)
Porque, então, deixo de ser pretensiosa para ser vazia?
Até que valha um só centavo na tua bolsa de valores?
E que valores...

Porque não dizes o que pensa?
Porque somes e não lamentas?
Porque consomes e não retornas?

Porque?

Não te direi jamais exatamente quem sou.
Terás de ouvir dos meus olhos.
Terás de compreender os gestos.
As idéias. As solidões.

Não me transportarei mais.
Não darei um só mísero passo em tua direção.
Pois já estou manca e perneta.
Estou cega e muda.

Entristecida e sozinha.

E viverei assim,
às custas de um sonho que nem lembro mais porque sonhei.

2.10.06

Capacetes Coloridos



“A areia, a brita são descarregadas. Um servente organiza os montes no canteiro; outro transporta parte para o ajudante de pedreiro que os mistura com cal ou cimento, trazido do depósito por um servente diferente; o quinto põe a argamassa em latas ou carrinho; leva ao pedreiro que assenta tijolos, reboca, fixa ou preenche uma fôrma, assistido por seu servente que carrega o vibrador ou recolhe o excesso caído. Em cima, o carpinteiro prepara outras fôrmas com a madeira empilhada perto, depois de caminho semelhante ao da argamassa com seus ajudantes e serventes. O armador dobra as ferragens assistido do mesmo modo, e, por toda a obra, vidreiros, marceneiros, pintores, eletricistas, encanadores, impermeabilizadores, taqueiros, faxineiros, sempre acompanhados de serventes e mais serventes. (...) Um mestre transmite as instruções, organiza a cooperação, fiscaliza, impede demoras, aperta: é, também, feitor.” (Sérgio Ferro, arquiteto)



Do triângulo,
a estrutura.

Lá na ponta alta,
Do cume,
Vem a ordem.

Do desenho,
Do maior,
Daquele que determina,
De longe, não sei de onde.

Aquele que usa o branco,
O capacete branco.
O dotô.

E aí, fora o dotô,
Também tem o mestre.

São todos esses
Aqueles dos capacetes
Reluzentes, alvos e firmes,
Que podem mandar e desmandar.

Agora, quem faz...

Ah! Quem faz é o resto.

Tudo o resto de capacete colorido.

Tudo a cidade,
De capacete colorido.

A grande base,
Do triângulo da vida,
De capacete colorido.