Metaforia Constante de Olhos que Ouvem Vida [ou resgatam o trauma da boca calada]

17.5.06

Qualquer dia

Aquele dia amanheceu. Amanheceu como na habitual expectativa correspondida de que os eventos naturais de todos os dias aconteçam, como sempre acontecem todos os dias. Mas não foi como qualquer dia.

Em um dia solitário e introspectivo o tumulto pareceu extravasar os limites etéreos de sua mente conturbada. Era meio dia quando começou a ler Marx. Pronto, estavam ali o relógio, o texto, o papel e a caneta vermelha. Leitura com hora para começar. Com hora para acabar. Pois é preciso organizar. A leitura é difícil. O texto não. Mas a cabeça é difícil. Não dá a atenção. Por mais que queira, por mais que se esforce, é a sua própria cabeça que não a deixa. Na ânsia de aproveitar a energia que quer sair, são mil as coisas que passam em sua mente. E uma delas é cabular o trabalho. "Como poderia? O que seria justo?". E rapidamente vem-lhe a idéia. E correndo, e esquecendo Marx, ela telefona para avisar: - Olha, tem problema eu não ir? - E a desculpa flui deliciosamente ágil pela garganta, sendo verdadeiramente plausível. Mas mesmo assim, seus ombros pesam mais um pouco a culpa de mais uma desculpa. Até sentir que foi mesmo plausível. E aí, retorna a Marx. E assim, como o ímã mais poderoso, como se o próprio Norte Magnético tivesse mudado de lugar e vindo parar exatamente em cima de sua escrivaninha, todas as idéias possíveis e imagináveis eram atraídas aos bandos. Caoticamente desorganizadas. Assim mesmo, num pleonasmo retumbante, as idéias aterrissavam sem guias, sem balizas, sem calma. Pensava a hora, pensava o valor e lembrava que tinha que comprar o diabo verde - aquele desentupidor de pia...

E nessa mesma desordem, estavam as idéias da cidade.

Findo o tempo de martírio com Marx, que infelizmente pouco teve a ver com a estória, ligou-se a tv. E os repórteres estavam em pânico. O jornal que chegara pela manhã já tinha nas manchetes aquelas estrelinhas vermelhas: "Mais ataques do PCC", "74 mortes confirmadas". A televisão parecia deliciada com aquelas notícias. Sentia-se a excitação de algo que está de fato acontecendo. "Olha como somos competentes". Pareciam arqueólogos em frente às ossadas de Jesus Cristo. A avenida vista pela janela estava repleta de automóveis parados. Havia sido anunciado o Armagedon Paulista e as pessoas esperavam miúdas dentro de seus carros, a salvação: o presente divino de poder chegar em casa.

Aos poucos, inteirando-se das notícias, vendo o jornal, lendo a tv, ligando para os amigos meio assustada, ao observar que até os celulares estavam com medo, foi pressentindo. Ficou ali, parada à janela, já que nada mais havia de ser feito, percebendo os movimentos claros de uma cidade voltada para um único sentimento: o medo. O medo instaurado. A poderosa mídia, e os bandidos revoltados. Se era aquilo mesmo, não dava pra saber. Estavam todos realmente com medo? Em que será que pensavam aqueles reféns de um trânsito causado? Qual seria o Norte de suas idéias magnéticas?

E o dia anoiteceu. Anoiteceu como na habitual expectativa correspondida de que os eventos naturais de todas as noites aconteçam, como sempre acontecem todas as noites. Mas não foi como qualquer noite.

Foi uma noite vazia. E solitária.

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